Arquivo mensal: julho 2021

Encontros Possíveis

Logo cedo, ainda meio sonolenta, Joana escutou a música que vinha de longe. Percebeu vir de um toca-discos antigo: “Amanhã, vai ser outro dia…” Imaginou ser algum vizinho, muito animado, ou no fundo do poço, tentando salvar-se da queda livre em que nos encontramos. De fato, o amanhã seria outro dia, apenas outro dia. Com olhos ainda pesados, Joana entendeu que, naquele instante, a frase da música não correspondia à esperança e à motivação de outrora. Acordar lhe trazia a certeza de que ainda estavam por vir muitos dias de silêncio, e isolamento.

Tomando coragem de sair da cama, Joana passou pelo banheiro, penteou seus longos cabelos crespos e, sem tirar o pijama, foi direto à cozinha. Preparou o café com gestos rápidos, displicentes e automáticos. Sentou-se à mesa, ainda suja por manchinhas de vinho da noite anterior. Ligou o computador, ali mesmo, enquanto bebia o primeiro gole de café quentinho. Evitou ler as notícias e já se preparava para a primeira reunião, obviamente virtual.

Naquela manhã, que começara cedo com a nitidez analógica da música distante, a precisão do mundo digital falhava. Joana estava cética, mas muito paciente. No computador, percebia que as vozes se ralentavam, se perdiam no tempo e no espaço. As fisionomias se paralisavam com as falhas da internet, revelando os detalhes ocultos da maneira de se expressar de cada um. Não via a hora de a reunião terminar e poder trabalhar tranquila, sem interrupções e demandas inoportunas: pequenas vantagens trazidas por uma pandemia.

Ao final do falatório, Joana fez uma pausa e sentou-se no sofá abaixo da janela.  Alternava a atenção entre o observar a rua e o entregar-se a pequenos devaneios. Se deu conta de que nesses tempos, as pessoas se entendiam pouco e o motivo era sempre o mesmo: falhas de conexão, seja analógica ou digital, presencial ou virtual. As pessoas têm a habilidade fisiológica de ouvir, mas agem com uma surdez impecável. Mantém o comportamento social simpático, típico da cultura brasileira, mas escutam apenas o que lhes fazem sentido.

Joana refletiu que talvez a surdez decorresse de uma tendência brasílica iniciada anos atrás: a de associar palavras a cores e cores a grupinhos de pessoas. Verde-e-amarelas, vermelhas, roxas… até rosas ou azuis! As pretas se esforçam por se fazer escutar e conseguem provocar um sofrido, mas necessário eco no coração de alguns. Joana teve medo de estar ficando maluca, mas não… Seu pensamento era metafórico e irônico, mas real. O país é que andava meio louco, mesmo.

Olhando a rua, percebeu que havia pouca gente. Todos se protegiam da nova doença, que tinha nome de sigla. Tudo parecia uma mescla de filme de ficção científica e de terror: pandemia, ciência e tecnologia. Os encontros pessoais e abraços tornaram-se uma ameaça de contaminação mortal. “Chega! A vida não pode ser assim!”, reagiu Joana.

Finalmente despertou-se e levantou-se do sofá. “Nada de devaneios, cores ou pijamas!”, pensou. Sentiu que precisava ver alguém, se misturar, nem que fosse a dois metros de distância. Tomou um banho, se vestiu, pegou a sacola de compras, a máscara, e saiu.

No caminho para o mercado, passando em frente à escola pública, a primeira pessoa que encontrou foi seu Joaquim, um senhor negro, que sempre veste a mesma roupa social, muito desgastada pelo tempo. Era pipoqueiro e trabalhava na frente da escola há 40 anos, desde que emigrara do norte de Minas. Conhecera gerações de crianças, inclusive a de Joana.  Era muito brincalhão e, de certa maneira, tomava conta das crianças. Conhecia os pais, sabia com quem andavam e se faziam coisas erradas. Joana surpreendeu-se ao vê-lo já que as escolas estavam fechadas há mais de um mês.

– Bom dia, seu Joaquim! Vendendo pipocas? Não há ninguém aqui…

– Bom dia, dona Joana! Como não há ninguém? Não vê, ali, Miguel saindo sem a mochila outra vez? É muito esquecido! E Laura? Essa não para quieta, sempre escalando a grade…

Joana pensou que seu Joaquim não estivesse bem da cabeça, até que ele completou:

– Não consigo viver sem trabalhar aqui, dona Joana! Uma semana em casa e achei que fosse morrer mais rápido de enfado do que de vírus… Se aqui não tem ninguém, não vai ser aqui que me contagiarei…

– Ufa! Achei que o senhor já estivesse vendo fantasmas por aí… Me dê uma pipoca doce!

Seu Joaquim preparou a pipoca com a energia de quem tem, diante de si, uma fila enorme a atender, mas o ruído do milho estourando ecoou pela cidade vazia. Entregou-lhe a pipoca com um sorriso alegre e banguela:

– Mas de vez em quando eu até vejo uns fantasmas mesmo! Fantasma não dá vírus, né?

Os dois riram e trocaram olhares carinhosos.

A moça seguiu o caminho ao mercado. Ao cruzar a rua, percebeu uma movimentação vindo da casa de portão verde. Notou um cheirinho de milho e de molho de tomate no ar. Aproximou-se. Através da grade baixa da casa, no fundo do terreno, viu um grupo pequeno em clima atarefado. Parou para ver o que faziam, já que a maioria das pessoas estavam isoladas em casa.

De pés no chão, montavam barracas, subiam bandeirinhas e armavam o que seria uma fogueira. Em uma euforia silenciosa, em pares, começaram a ensaiar o São João. Mesmo sem música, o entrosamento da quadrilha, a decoração, o cheirinho de canjica, fizeram Joana, que estava há muitas semanas reclusa, se sentir em festa! Até que o celular tocou e todos a olharam.

Miguel deixou os amigos, para ver quem era. Se olharam em silêncio. Joana achou que sua pele morena não evidenciaria o rubor do sangue que lhe subia à cabeça, mas o olhar surpreso e a respiração ofegante denunciavam o incômodo de ter sido flagrada espionando a intimidade alheia. Miguel, que já estava de olho, se sentiu animado em conhecer alguém novo.

– Oi, vi que está há um tempo no portão…

Joana ficou constrangida vendo que não era apenas ela que os espiava de longe, mas que também havia sido vista. Não soube o que dizer. Miguel continuava a olhá-la: ela tinha olhos arredondados e grandes que revelavam facilmente seu estado de espírito, pele negra. E sim, tinha um rubor nas bochechas que ele não identificou se era maquiagem ou timidez. Os cabelos longos estavam trançados e pendiam em cima do busto.

Foram segundos de silêncio que pareceram durar muito. O suficiente para que Joana pensasse em uma resposta e Miguel se desse conta de que estava seduzido.

– É que a cidade está tão vazia… Não imaginei encontrar um clima assim festivo… disse, sem tirar os olhos de Miguel e aliviada por encontrar algumas palavras.

Há semanas, Miguel estava enfurnado com os amigos na casa que dividiam. Alguns com os quais, depois de tanta convivência, nem sentia mais afinidade. Era um alívio poder encontrá-la. Teve vontade de convidá-la para um café, de conhecê-la. Enquanto a olhava, atento, sentiu que poderiam ter uma amizade. O celular voltou a tocar. Ela não quis atender, mas ao ver quem a chamava, lembrou-se de que teria que voltar.

            – Me passe seu número!

Joana disse o número, mais avermelhada do que antes. Trocaram um longo olhar de estranheza e êxtase enquanto ela se afastava até sumir de vista. No caminho para casa, o coração estava acelerado e o pensamento a mil. Até se esqueceu do mercado! Andava com pressa sem se dar conta do sorriso que levava no rosto. Avistou seu Joaquim que, brincou:

– Nossa! Dessa vez parece que foi a senhorita que viu fantasma… Cuidado! Tem fantasma que dá vírus mesmo! Soltou uma risada engraçada que a desconcertou. Mesmo assim, riu de volta, e sem dizer nada, seguiu.

Em casa, voltou ao ponto em que deixara tudo: computador ligado, vozes se perdendo, falatório virtual…, mas dessa vez, entusiasmada com a novidade, com os encontros possíveis… “Ouviu ainda, ao longe,  o toca-discos do vizinho: “Amanhã está toda a esperança, por menor que pareça…”.

Texto publicado no livro O Ano em que Fizemos Contato (Lorena Sales dos Santos, 2020).