Tráfico de coroas?

Então o que houve foi que antes da segunda análise houve uma identificação. Para mim foi uma identificação ao inconsciente. Começou assim. Depois houve uma experiência de castração. Então muito depois se percebeu fora da linguagem. Então por isso pensei que havia chegado ao final de análise, o que pode ter sido ou não. Mas foi ele ou ela que fez a identificação? Sempre havia pensado que houvesse sido ela, mas agora estou na dúvida. Havia pensado que porque ela se identificou ao inconsciente (ela teria se identificado ao traço?), rapidamente se chega ao final da análise porque não havia muito mais. Então, o final de análise estava sendo considerado desde esses fatos. Mas se ele se identificou ao desejo, então foi ele que fez a identificação ao inconsciente? O fato de se perceber fora da linguagem foi devido a isso? Não estou certa.

Mas enfim, 10 anos depois eis que se repete o mesmo. Surgem analistas que se encaixam perfeitamente nos mesmos fantasmas de antes. Quando me dou conta que volto a Riobaldo e Diadorim, não que não se possa voltar a eles, personagens de um clássico, mas porque são outros os personagens da literatura brasileira que me chamam; quando vejo que algo havia mudado na relação com minha filha, meu marido, me dou conta de que havia algo muito errado… passo toda a viagem assutada. Então houve uma identificação. Talvez isso faça parte do espanto durante o vídeo? Algo de real meu me haviam levado. Coroas… Talvez só no primeiro momento, já que percebi que se identificaram à minha falta. Veio a angústia. Mas no fim, houve apenas uma identificação imaginária. Não deixa marca, traço. Já me recuperei. O que pudesse ser de imaginário relacionado a ela se foi. Mas recupero o tom da relação familiar, de mim mesma… Para poder entender isso, considero que houve um fim. A origem é o destino. O destino é a origem. Gangorra: Se morre pela imagem. Se morre pelas palavras. Se morre de vez.

Mas e a escrita? Dessa sim, percebo que ficou algo. Me sinto grata. Gratidão não é amor. Faz parte do amor, mas não é amor. Dentro das intempéries da vida, do amor, do desamor, da gratidão, dos favores e boas intenções também há traição. Há quem tome dúvidas por mentiras. Há quem troque coroas. Ainda que aparentemente com boa intenção. Mas o real voltou, ao menos aquele que estrutura. A escrita ficou. Sigo a mesma, renascida, um pouco diferente… Vejo as luzes com outros tons, me lembro de coisas boas de antes dessas loucuras identificatórias.

O beijo de Rubiales

Talvez seja um pouco tarde para retomar esse assunto porque já se passaram vários dias. A Seleção Espanhola Femenina de Futebol havia ganhado a Copa do Mundo e no final um beijo! Luis Manuel Rubiales Béjar, ex-presidente da Real Federação Espanhola de Futebol beija na boca, a principal jogadora da seleção Espanhola na Copa do Mundo Feminina, Jenni Hermoso, no momento de cumprimentá-la. Nada me pareceu estranho, mesmo sendo feminista. Parecia somente um momento de entusiasmo mútuo e me parece que a jogadora também não se importou no primeiro momento.

Mas as críticas foram tantas, que algo tão simples e potente como um beijo, foi duramente criticado, especialmente por feministas e simpatizantes do discurso feminista. Ele, desde um lugar de poder, dá um beijo sem consentimento na jogadora passando uma mensagem machista de que um homem pode se atrever ao corpo feminino como se fosse um objeto. Creio que essa foi a principal crítica recebida já que ainda hoje muitas mulheres pelo mundo a fora são vítimas de agressões machistas de vários tipos por essa desigualdade de lugar de poder relacionado à diferença de gêneros. A situação que poderia ter sido facilmente controlada foi ganhando contornos muito difíceis de serem solucionadas até ir à justiça! Só por um beijo e nada mais!! Fico pensando em todos os beijos na boca que todos os esportistas homens já se deram durante décadas em comemoração de um ponto, de um jogo. As mulheres também! Mas entre homens e mulheres tudo muda de figura já que é nítido o desnível de poder.

Entretanto, esse argumento deixa de considerar o que poderia de haver de especificidade da relação entre os dois e deixa de servir também como exemplo para todas as outras situações em que um beijo não necessariamente é um agressão. Sem dúvida, há um desnível de poder entre os dois, mas e se a relação deles tivesse abertura para aquilo sem que fosse interpretada como uma imposição de poder? E se aquilo fosse justamente uma brecha de horizontalidade entre os dois, como expressão de uma amizade? E se houvesse algum tipo de sentimento amoroso oculto entre os dois que naquele momento de entusiasmo culminou em um beijo? O contorno sentimental fica totalmente de fora quando o argumento é só o da falta de consentimento.

Rubiales foi pressionado a se demitir, mas a princípio se recusou, resistiu até onde pôde. Em uma atitude que muitos consideraram arrogante. “Não daria para se achar menos e humildemente cair de seu posto?” No final, a pressão foi tão forte que precisou se demitir.

Todo esse acontecimento me deixou um pouco perplexa. Por conta de um beijo, espontâneo, às vistas do público, ou seja, sem manipulação alguma do acontecido alguém tenha perdido seu posto de trabalho.

Mas quem nunca deu um beijo roubado?

Então fiquei pensando se tivesse acontecido o contrário e se uma mulher (rubia o no), com menos poder que um homem tivesse dado um beijo sem seu consentimento? Qual seria a reação das feministas? Talvez seguindo nossos padrões machistas, ele tivesse sido idolatrado, seus colegas o tivessem invejado, ele não teria tido que se demitir… Ou num vitimismo antagônico se diria vítima de uma agressão, tal qual dizem os brancos que defendem racismo reverso, por exemplo. Assim como no outro caso, foi uma “agressão” no corpo do outro por haver sido sem seu consentimento. Mas qual seria o agravo para ele, já que em geral os homens costumam ter mais poder que as mulheres mesmo assim? Poderia ter sido só por sedução, para deixar uma lembrança, uma marca. Talvez tivesse sido só por inveja do poder alheio, então ela se valha da sedução como um saber fazer que deixa uma marca de um poder distinto do masculino, porque é sem saber exatamente ao certo como funciona. O que se segue ao beijo, mesmo muito tempo depois, seria isso uma mentira, como dizem? Seja um processo na justiça, sejam os sentimentos e as sensações que possam haver surgido, bons ou ruins, egoistas ou não. O jogo da sedução não é uma mentira. É só um pouco ilusório (para o que seduz e para o seduzido), um pouco mágico, talvez, mas não sem verdades. Não seria somente um saber fazer com o corpo e com o que se pode saber sobre a alteridade? Um jeito de não se deixar ser dominada, engolida, devorada totalmente, será?

Toda a tentativa de justiça, de tentar encontrar uma justificativa ou um diagnóstico baseado no referencial de apenas um lado (em geral do lado masculino) só sufoca o que poderia ter sido resolvido muito mais facilmente, com menos resistência, para todos os lados, porque ninguém é só sedutor ou só seduzido, só vítima ou só agressor. Ninguém é fixo em uma maneira de seduzir ou de se atrair por alguém de modo que possa servir de referencial para nomear ou colocar na berlinda a outra parte. Vai me dizer que você nunca seduziu? É pesado. Não há paz.

Com amor, Juliana.

Algumas reflexões

Não tinha como saber antes

Não tinha concluído ainda, por isso pensava em seguir, se fosse possível. Percebia que ele já havía chegado ao limite, mas como poderia saber se não continuasse? Talvez devesse ter concordado com os que diziam que já havia chegado ao fim, mas se houvesse feito estaria apenas alienada à vontade alheia? A decisão de ficar ou sair deveria partir de uma situação vivida e não só da opinião alheia ainda que houvesse verdade. Apesar de ele ter dado mostras de si, o que acontecesse depois teria sido decisivo para seguir ou não. Mas só o que acontecesse depois. Não tinha como saber antes. Primeiro veio algo de si e depois com o que seria feito daquilo é que seria possível continuar ou não.

Luto, mortos não falam, certeza antecipada ou sintoma?, angústia e saber fazer?

Havía ao final um processo de luto em curso, após uma experiência de castração, então como alguém que deveria estar morto ressuscita para que não se esqueçam qual é o drama? Ainda não havia concluído o luto e deveria dar outra volta, começar outra vez? Então de uma parte, seria certeza antecipada ou simplesmente um sintoma? Ou os dois ao mesmo tempo? Da outra parte houve angústia, um bloqueio de desejo, agora do desejo de concluir. Morte. Também houve saber fazer, mas como intervir eficazmente à distância com o lapso temporal de uma comunicação por redes sociais antes de ser dominada pela angústia ou depois? Bloqueio. Raiva.

Outro lado da mesma moeda, impasse, gravidez?

Foi o último momento de angústia, com um acting out, que se seguiram a varios momentos de lapsos de pulsão de morte. Então há um regreso ao consultório, mas o que ocorreu ali, não permitia seguir. Era só solucionar um acting out e não haveria impasse. Mas as decisões foram dos dois lados. Um lado estava decidido a sustentar o impasse e a interpretação (estava idealizada?). Do outro lado se colocava uma questão que pode ser que não devesse ter sido colocada como tal, mas aquilo era só angústia… e ao mesmo tempo uma tomada de decisão. Será que ele pensou que não se poderia entender? O que é o conhecimento frente à angustia? Alguém mais tem algo a dizer? Mas a idealização da intepretação sua teria a ver com sua constituição psíquica? Deveria sair grávida? Houve um bloqueio do desejo. Sai morta, não grávida.

Férias e inconsciente

A essa altura do campeonato as férias programadas com semanas de antecedencia ainda são usadas como desculpas por analistas, que não aguentam não estar no lugar do Outro e acham que os analisandos estão dando desculpas para não ouvir o Outro? É sério isso? Não seria só angústia do analista de não poder suportar não saber? Trago boas notícias (depende de para quem): o que ocorre em uma análise tem mais chance de atrapalhar as férias, que o contrário.

Na imagem um quadro de Antonio Sanchez Cabello, Claridad en el Río.

Incertezas

Recentemente li um trecho do livro do Edward Said, Fora de Lugar, em que ele narra como foi sua experiência de deixar a Palestina, sua mãe, seus irmãos e ir com seu pai aos Estados Unidos, depois de haver morado também em outros países. Fiquei pensando nas pessoas que migram contra suas vontades e no quanto estar em um país estrangeiro lhe coloca diante do fato de não se ter garantias, de experimentar várias vezes estar desamparado, sem referencial que lhe dê certezas. Me dá curiosidade de saber como outras pessoas vão construindo o laço com outra terra, como fazem com que o estrangeiro possa ser familiar em alguma medida. Me lembro de todos os que conheci desde que saí do Brasil. Independente de ter ido por vontade própria ou contra sua vontade, as incertezas estarão lá. Sempre estiveram quando também alguém se sente estranho no próprio país. Esse foi o relato de várias pessoas durante o período do Bolsonaro, por exemplo.

Mas, quando se realiza uma travessia que começa com um pedido de ajuda, isso já é um compartilhamento de incerteza e de fragilidade. Quando alguém pede ajuda é porque reconhece algo que deixa de controlar. Ela não tem certeza. Ela duvida. Se engana, acha que pode estar enganada e tenta compartilhar isso com outra pessoa não para ter certezas, mas para um diálogo que possa ser esclarecedor. Claro que inicialmente não sem supor um saber no outro que contribua para o esclarecimento, coisa que não existe sempre. Então, nesse caso, esclarecedor é simplesmente ser suficiente para se admitir a partir de construções a travessia mesmo, o que aconteceu, sem autorizações, nem formalidades…

Foto de um jardim japones na França

Fantasia

Foram dias com os olhos arregalados e a atenção perplexa capturada pelo real da castração e da não relação sexual e ao ter se dado conta de uma situação, de uma cena que se repetia intensamente. Não era nova, nem nítida, mas sempre esteve lá, ainda que meio soterrada, escondida, cúmplice de não poder aparecer tal qual, porque é demasiada e porque para ser vista precisa ser construída. E porque naquela ocasião revelava duas coisas.

A primeira é que inconscientemente foi vivida desde muito tempo, como realidade psíquica. De se sentir rejeitada, traída por ser menos e a partir daí tentar alcançar um ideal, seja por identificação a ele ou ao ideal que se tinha dele (Por exemplo, A Divina Comédia foi um presente dado, mas que na verdade não fez muito sucesso), seja por tentar ser desejada por ele ou ao ideal que se tinha da mulher que ele desejasse (Quando ela percebia que ele apoiava mais a amiga rival que a ela própria. Todas muito narcisistas). São idas e vindas. Nada é linear e preciso. Mas não tinha saber sobre isso. Tinha angústia em cada uma de situações similares. Assim foi buscada a primeira análise. Mas ao final da segunda, se vivía fora de tudo isso…

A segunda é que na verdade é tudo ficção e é possível desejar fora desse circuito. Será? Ela aposta que sim! Poder ler o que cada um faz diante da castração também é uma outra realidade, que pode se tornar mais satisfatória que estar na fantasia. O difícil é tentar fazer análise assim! Mas a trajetória de uma análise não é se desidentificar, se desalienar e poder não estar somente subordinado à lei do inconsciente?

Ainda vou editar esse texto mais vezes… está inconcluído.

Na imagem, foto montada de duas pinturas de Edward Hopper: Hotel Room, 1931 (esquerda) y Nighthawks, 1942.

Mar azul

Campo seco e mar fértil. É o que há. Qualquer tentativa de casa valeria a pena para poder nadar naquela imensidão de mar refrescante debaixo de um sol quente de um litoral tropical do Brasil. A casa era simples, mas a viagem valia. Só tinha um cômodo: cozinha, quarto e do lado, um banheiro. Para quê mais? O prazer quem dá é a natureza. O ar fresco, a respiração e o mínimo do viver. Passada a temporada, era momento de voltar ao concreto da cidade para se afogar na poluição viral. Prefiro a tentativa de casa. A parede fina, o telhado fino, o campo seco e o mar azul.

Encontros Possíveis

Logo cedo, ainda meio sonolenta, Joana escutou a música que vinha de longe. Percebeu vir de um toca-discos antigo: “Amanhã, vai ser outro dia…” Imaginou ser algum vizinho, muito animado, ou no fundo do poço, tentando salvar-se da queda livre em que nos encontramos. De fato, o amanhã seria outro dia, apenas outro dia. Com olhos ainda pesados, Joana entendeu que, naquele instante, a frase da música não correspondia à esperança e à motivação de outrora. Acordar lhe trazia a certeza de que ainda estavam por vir muitos dias de silêncio, e isolamento.

Tomando coragem de sair da cama, Joana passou pelo banheiro, penteou seus longos cabelos crespos e, sem tirar o pijama, foi direto à cozinha. Preparou o café com gestos rápidos, displicentes e automáticos. Sentou-se à mesa, ainda suja por manchinhas de vinho da noite anterior. Ligou o computador, ali mesmo, enquanto bebia o primeiro gole de café quentinho. Evitou ler as notícias e já se preparava para a primeira reunião, obviamente virtual.

Naquela manhã, que começara cedo com a nitidez analógica da música distante, a precisão do mundo digital falhava. Joana estava cética, mas muito paciente. No computador, percebia que as vozes se ralentavam, se perdiam no tempo e no espaço. As fisionomias se paralisavam com as falhas da internet, revelando os detalhes ocultos da maneira de se expressar de cada um. Não via a hora de a reunião terminar e poder trabalhar tranquila, sem interrupções e demandas inoportunas: pequenas vantagens trazidas por uma pandemia.

Ao final do falatório, Joana fez uma pausa e sentou-se no sofá abaixo da janela.  Alternava a atenção entre o observar a rua e o entregar-se a pequenos devaneios. Se deu conta de que nesses tempos, as pessoas se entendiam pouco e o motivo era sempre o mesmo: falhas de conexão, seja analógica ou digital, presencial ou virtual. As pessoas têm a habilidade fisiológica de ouvir, mas agem com uma surdez impecável. Mantém o comportamento social simpático, típico da cultura brasileira, mas escutam apenas o que lhes fazem sentido.

Joana refletiu que talvez a surdez decorresse de uma tendência brasílica iniciada anos atrás: a de associar palavras a cores e cores a grupinhos de pessoas. Verde-e-amarelas, vermelhas, roxas… até rosas ou azuis! As pretas se esforçam por se fazer escutar e conseguem provocar um sofrido, mas necessário eco no coração de alguns. Joana teve medo de estar ficando maluca, mas não… Seu pensamento era metafórico e irônico, mas real. O país é que andava meio louco, mesmo.

Olhando a rua, percebeu que havia pouca gente. Todos se protegiam da nova doença, que tinha nome de sigla. Tudo parecia uma mescla de filme de ficção científica e de terror: pandemia, ciência e tecnologia. Os encontros pessoais e abraços tornaram-se uma ameaça de contaminação mortal. “Chega! A vida não pode ser assim!”, reagiu Joana.

Finalmente despertou-se e levantou-se do sofá. “Nada de devaneios, cores ou pijamas!”, pensou. Sentiu que precisava ver alguém, se misturar, nem que fosse a dois metros de distância. Tomou um banho, se vestiu, pegou a sacola de compras, a máscara, e saiu.

No caminho para o mercado, passando em frente à escola pública, a primeira pessoa que encontrou foi seu Joaquim, um senhor negro, que sempre veste a mesma roupa social, muito desgastada pelo tempo. Era pipoqueiro e trabalhava na frente da escola há 40 anos, desde que emigrara do norte de Minas. Conhecera gerações de crianças, inclusive a de Joana.  Era muito brincalhão e, de certa maneira, tomava conta das crianças. Conhecia os pais, sabia com quem andavam e se faziam coisas erradas. Joana surpreendeu-se ao vê-lo já que as escolas estavam fechadas há mais de um mês.

– Bom dia, seu Joaquim! Vendendo pipocas? Não há ninguém aqui…

– Bom dia, dona Joana! Como não há ninguém? Não vê, ali, Miguel saindo sem a mochila outra vez? É muito esquecido! E Laura? Essa não para quieta, sempre escalando a grade…

Joana pensou que seu Joaquim não estivesse bem da cabeça, até que ele completou:

– Não consigo viver sem trabalhar aqui, dona Joana! Uma semana em casa e achei que fosse morrer mais rápido de enfado do que de vírus… Se aqui não tem ninguém, não vai ser aqui que me contagiarei…

– Ufa! Achei que o senhor já estivesse vendo fantasmas por aí… Me dê uma pipoca doce!

Seu Joaquim preparou a pipoca com a energia de quem tem, diante de si, uma fila enorme a atender, mas o ruído do milho estourando ecoou pela cidade vazia. Entregou-lhe a pipoca com um sorriso alegre e banguela:

– Mas de vez em quando eu até vejo uns fantasmas mesmo! Fantasma não dá vírus, né?

Os dois riram e trocaram olhares carinhosos.

A moça seguiu o caminho ao mercado. Ao cruzar a rua, percebeu uma movimentação vindo da casa de portão verde. Notou um cheirinho de milho e de molho de tomate no ar. Aproximou-se. Através da grade baixa da casa, no fundo do terreno, viu um grupo pequeno em clima atarefado. Parou para ver o que faziam, já que a maioria das pessoas estavam isoladas em casa.

De pés no chão, montavam barracas, subiam bandeirinhas e armavam o que seria uma fogueira. Em uma euforia silenciosa, em pares, começaram a ensaiar o São João. Mesmo sem música, o entrosamento da quadrilha, a decoração, o cheirinho de canjica, fizeram Joana, que estava há muitas semanas reclusa, se sentir em festa! Até que o celular tocou e todos a olharam.

Miguel deixou os amigos, para ver quem era. Se olharam em silêncio. Joana achou que sua pele morena não evidenciaria o rubor do sangue que lhe subia à cabeça, mas o olhar surpreso e a respiração ofegante denunciavam o incômodo de ter sido flagrada espionando a intimidade alheia. Miguel, que já estava de olho, se sentiu animado em conhecer alguém novo.

– Oi, vi que está há um tempo no portão…

Joana ficou constrangida vendo que não era apenas ela que os espiava de longe, mas que também havia sido vista. Não soube o que dizer. Miguel continuava a olhá-la: ela tinha olhos arredondados e grandes que revelavam facilmente seu estado de espírito, pele negra. E sim, tinha um rubor nas bochechas que ele não identificou se era maquiagem ou timidez. Os cabelos longos estavam trançados e pendiam em cima do busto.

Foram segundos de silêncio que pareceram durar muito. O suficiente para que Joana pensasse em uma resposta e Miguel se desse conta de que estava seduzido.

– É que a cidade está tão vazia… Não imaginei encontrar um clima assim festivo… disse, sem tirar os olhos de Miguel e aliviada por encontrar algumas palavras.

Há semanas, Miguel estava enfurnado com os amigos na casa que dividiam. Alguns com os quais, depois de tanta convivência, nem sentia mais afinidade. Era um alívio poder encontrá-la. Teve vontade de convidá-la para um café, de conhecê-la. Enquanto a olhava, atento, sentiu que poderiam ter uma amizade. O celular voltou a tocar. Ela não quis atender, mas ao ver quem a chamava, lembrou-se de que teria que voltar.

            – Me passe seu número!

Joana disse o número, mais avermelhada do que antes. Trocaram um longo olhar de estranheza e êxtase enquanto ela se afastava até sumir de vista. No caminho para casa, o coração estava acelerado e o pensamento a mil. Até se esqueceu do mercado! Andava com pressa sem se dar conta do sorriso que levava no rosto. Avistou seu Joaquim que, brincou:

– Nossa! Dessa vez parece que foi a senhorita que viu fantasma… Cuidado! Tem fantasma que dá vírus mesmo! Soltou uma risada engraçada que a desconcertou. Mesmo assim, riu de volta, e sem dizer nada, seguiu.

Em casa, voltou ao ponto em que deixara tudo: computador ligado, vozes se perdendo, falatório virtual…, mas dessa vez, entusiasmada com a novidade, com os encontros possíveis… “Ouviu ainda, ao longe,  o toca-discos do vizinho: “Amanhã está toda a esperança, por menor que pareça…”.

Texto publicado no livro O Ano em que Fizemos Contato (Lorena Sales dos Santos, 2020).


Saudades poliglotas

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Saudade sentimos quando  o silencio entre pessoas comunica mais que as palavras; quando afinamos o tom do nosso cantarolar ao da música super famosa que toca nas rádios estrangeiras; quando a presença graciosa de nossos corpos não passa despercebida na multidão de outras corporeidades quase iguais.

Como escrever uma palavra que abranja tantas emoções? Como destrinchá-la em frases enormes que possam tocar a alma, sem falar a mesma língua?

Os pequenos e silenciosos desencontros da vida nos lembram sempre de que não é possível funcionar sempre na mesma rotação, ter o mesmo horizonte e se apropriar apenas de um idioma. É preciso ser bilíngue ou melhor… poliglota! de palavras, de olhares, de silêncios e pesares.

Engana-se quem pensa que assim a saudade passará. Talvez ela venha em dobro: a cada novo mergulho cultural, somam-se novas saudades antes desconhecidas.

A imagem é da artista plástica Beatriz Milhazes.

A música que inspira é Corpocontinente da Céu.

Breve retrato de uma personagem

 

arvore méxico 2020

Paulínea Regina Andrade é uma mulher de 46 anos, estatura mediana, magra, de poucos cabelos lisos, muito lisos e grisalhos, cortados na metade do pescoço. Costuma vestir-se com calça jeans e camiseta. Era impressionantemente inteligente. Arquiteta, havia trabalhado com outros arquitetos e artistas de renome. Participou de grandes projetos nacionais.

 

Na sua adolescência e juventude se destacava pela ousadia, pela criatividade, brilhantismo e audácia. Foi uma jovem livre e à frente de seu tempo. De pensamento rápido, constrangia algumas pessoas que se acercavam a ela. Paulínea Regina era fora da curva. Com o passar dos anos foi ficando cada vez mais…

Muitas vezes foi incompreendida, de tão inteligente! Muito viva, seus olhos brilhavam. Era como uma antena multisensorial onipresente que captava tudo no corpo. Dava respostas rápidas e precisas sobre a intimidade das pessoas, sem ninguém dizer nada. Muitas pessoas se apaixonaram por ela, mas sua personalidade poliédrica não se encaixava na rotina certinha das relações amorosas.

 No estúdio, todos escutavam atentos a suas observações. As idéias eram alucinantes!  Arranha-céus de madeira,  um domo que cobria um bairro inteiro,  fazendas verticais gigantes. Ideais para um conto do Realismo Fantástico, mas inoperáveis no mundo concreto. Os engenheiros não sabiam como construí-las. A cada dia que passava, todos a observavam e se entreolhavam curiosos e perplexos.

Aline, sua irmã, lembra-se  de escutá-la comentando sobre os cabelos negros de uma amiga. Um dia Paulínea disse a essa amiga que ela lembrava o Bob Marley. Todos riram… Não se parecia em nada! Mas Bob Marley se fez presente no rosto, cabelo e na fisionomia da amiga. Outro dia, na sala de espera do consultório de seu médico, o Dr. convidou-a a entrar, mas ela ficou plantada na porta. Não queria entrar de jeito nenhum! Rapidamente contou uma piada. Todos riram, mas não houve consulta.

Paulínea Regina teve, por todos esses anos, controle sobre os fatos, sobre os argumentos. Ninguém duvidava dela. Assim seguiu na vida… Espirituosa, fazia os outros rirem para conseguir o que fosse. Esse foi o seu lugar seguro, foi o que a manteve vivaz! Entretanto, às vezes, quando chegava em casa, queria estar só. Sozinha, ocupava-se com seus pensamentos. Sua mente não parava: um mundo fértil, absurdo e sem limites. 

Aos poucos, seu brilhantismo foi ficando fosco, suas ideias perderam o sentido, seus projetos, impraticáveis. Suas certezas desfaziam-se. As formas coesas de seus projetos transformavam-se em areia e o tempo se desintegrava. Um dia, com o pensamento a mil,  teve várias lembranças, nem todas boas. Imagens de sua vida passavam pela cabeça mas não emocionavam. Pertubardor!

Repentinamente Paulínea Regina parou pela primeira vez. Saiu ao jardim. Do jardim de sua casa, a única beleza do dia era a neblina. Caminhou descalça pela terra. Estava absolutamente sozinha. Perfeito! Deitou-se no gramado e olhou o céu por entre os galhos altos das árvores. Estava em paz. Aos poucos sentiu o seu corpo leve desfazendo-se para se misturar aos galhos finos caídos no chão. Deixou de existir.

 

Foto: tirada por mim de uma Jacarandá na Cidade do México, 2020.

“But we’re never gonna survive unless we get a little crazy”

Texto realizado como exercício do curso de escrita criativa na Verbal Assessoria Linguística em maio de 2020.

 

Sobre a insignificância das palavras

Por um instante não valia a pena prestar atenção às palavras. Elas diziam muito pouco ou quase nada. Argumentação inútil. Há um mundo de sensações, sentimentos, emoções e possibilidades de compreensão das pessoas que estão muito além da limitada ordem de letras das frases. Pela primeira vez me dei conta de que as palavras, muitas vezes, comunicam inutilidades; fazem o ambiente pesar; ajudam a produzir lixo. Entopem o mundo com falsas promessas.  Palavras impressas em papéis…  palavras nos emails…   Elas não conseguem comunicar sozinhas, apesar de seu status de poder… pura arrogância e atropelamento.